QUATRO

[Em muitos lugares]


Em muitos lugares é possível aos homens sentirem uma ligação entre a terra, o céu e o tempo vivido, mas locais hão em que essa ligação não é somente pressentida, mas vivida. Não são muitos nem sequer todos conhecidos, e os homens assinalaram-nos com as marcas de antigamente para sua proteção, por se convencerem das perigosas possibilidades das passagens por esses locais, plantando aí uma árvore, uma cruz, uma pedra fita, ou desenhando um círculo com três cruzes dentro.

É nos lugares mais altos e nos sítios mais profundos que a realidade do antes, do agora e do depois se misturam, o passado passará de novo, o que passa ainda não passou, mas já aconteceu. Ali o tempo para e não existe, a terra deixa de ser firme e é levada pelo vento, e o ar do céu torna-se palpável como a areia. Nesses lugares fundos junto aos rios, os homens construíram pontes, pois é ali possível a sustentação e o equilíbrio de arcos de pedras sobre a água corrente.

São as pontes esses lugares onde algo tão terreno quanto a rocha pode estar suspensa no ar, como parecem estar os grandes amontoados de penedia levados para o alto dos montes por gigantes descomunais em tempos imemoriais, ali permanecendo em equilíbrio ao tempo e ao vento pelos séculos, não havendo notícia de alguma vez se terem despenhado encosta abaixo. Ou nas quebradas dos montes, chamadas portelas, onde a terra parece dar lugar ao céu e onde o vento faz caminhos.

Essas quebradas, de onde brotam fontes e escorrem córregos e regatos para cada uma das suas partidas, onde confluem os caminhos e estradas desde os vales fronteiros, e onde confrontam os termos e terras divisas dos homens, sejam aldeias, províncias ou reinos, eram os sítios primordiais para demarcação de limite e fronteira. Para ali trouxeram os homens esteios que fincaram para marcar o terreno ou construíram as grandes arcas de pedra para caçar o tempo que lhes fugia.

O tempo é um desses espíritos que não existindo, existe. Na posse do tempo os homens medram, edificam e reformam, mas na ausência dele, arruínam-se e morrem. Andam os homens regulados pela sucessão das noites aos dias, por sucederem as estrelas ao sol e este aquelas, e com isto vão-se sucedendo os anos a cada sucessão de inverno e inferno. Um dia, o tempo de cada homem cessará e como os outros homens descobrirão então, o tempo não para nem acaba. O tempo é o medo.

Vai chegando o rapaz ao alto da portela onde afluem caminho e tempo, onde este para ou parecer parar, quando na realidade ele regressa e recua, para avançar novamente. A noite abrira-se das nuvens e o rapaz equilibrava-se do vento baixando a cabeça mal coberta, segurando a sua carga com firmeza, guiado pelos sulcos fundos cravados no chão de penedia do caminho pelos rodados de séculos, até chegar junto ao freixo enorme e isolado que medrava no topo. Ali se abrigou.

Os dentes rasparam o osso buscando a carne restante, depois partiram-no pelas extremidades com estalidos e o tutano foi sugado com a satisfação de uma missão cumprida, rematando num assobio de flauta. O homem soprou a perceber as diferentes tonalidades do assobio inesperado e por fim atirou o osso para cima dos outros, às brasas da fogueira quase extinta. Lambeu os dedos à procura das pedrinhas de sal que restavam entre a gordura do coelho magro e levantou-se.

Sacudiu a manta, fechou o alforge, apertou o saco cingido ao cinto e dirigiu-se para a mula que pastava abrigada da humidade da alvorada pela copa do carvalho frondoso. O som por vezes gorgolejante das águas correntes do rio lambendo os choupos metidos na margem emprestavam um motivo lúgubre à aurora. O homem lançou a manta no dorso da mula que levantou a cabeça para ele, recebendo uma festa no beiço em troca. Depois, colocou-lhe o alforge sobre a base do pescoço.

Ao contrário do esperado, por ser andadeira e sentindo-se pouco carregada, a mula deixou-se guiar pelo cabresto sem resistência. O homem nem precisava de esticar a tira de couro, porque a mula seguia-o. Caminharam uns momentos junto à margem até chegarem a uma clareira ampla onde a margem ficava ao nível da água do rio e onde ele era mais largo. Na outra banda via-se a barca de passagem acostada e na luz crescente da manhã que se levantava, a silhueta do barqueiro.

O barqueiro também os tinha visto e acenou com o braço levantado três vezes, talvez para poupar os clientes aos formalismos das travessias fluviais, dependentes do chamamento de quem pedia passagem e a negociação audível do regateio de custos e dos meios de pagamento, forçando a uma vozearia despropositada ao sossego destas paisagens.

Assim não sucedeu e ao cabo de poucos minutos, já a barca aproava à margem.

O barqueiro pousou a vara no tabuado da plataforma e saltou para a margem. O viajante tinha aberto o alforge e retirara de lá um saco com uma medida de centeio, passando-o ao barqueiro. Este apalpou o saco, adivinhando os bagos escuros e compridos no interior através do tecido grosseiro e pesou-o depois com a mão, anuindo com a cabeça a maquia. Passou a tira de couro da mula por cima dela e com cuidados vagarosos, palmou-a até ela conseguir vencer o degrau da borda da barca e colocar-se no meio do tabuado da plataforma.

O almocreve colocou-se no lado agora oposto à margem, enquanto o barqueiro recolhia a vara. Metendo-a na terra deu um impulso forte, afastando a barca da margem, enquanto assobiava baixinho uma música que atraía a atenção da mula, que virara a cabeça para ele, fitando-o com curiosidade. O viajante olhava em frente para o caminho da outra margem que se aproximava constante a cada varadouro do barqueiro, imaginando a subida da serra que lhe tomaria toda a manhã e boa parte da tarde desse dia, se aquele tempo limpo se mantivesse.

O vento parecia fraco e as nuvens adiante eram muito esparsas. Como a música do barqueiro lhe chegara aos ouvidos, o viajante começou a assobiar também, para espantar o encantamento, pois assobio de barqueiro é tão perigoso quanto o canto de sereia, ambos andam sobre as águas e transportam todos os seus males. O assobio do dono acalmou a mula e mal ela voltou a cabeça para a proa, o barqueiro silenciou-se.

Entre as árvores viam-se os telhados colmaços da aldeia que sempre existe na borda das passagens, alguma dessas casas será a do barqueiro, outra será uma estalagem, ao lado uma ferraria e no princípio da rua deserta, o estábulo. A barca encostou suavemente à estacada de troncos que servia de acostadouro e firme de terra aos passantes. Enquanto o barqueiro atava a corda ao tronco polido por ataduras imemoriais, o viajante e a mula meteram-se ao caminho, sem olhar para trás, acertando o passo um pelo outro, os cascos ferrados cadenciados com a madeira das solas na estrada que subia a serra.

No início, era pouco sinuosa e ladeada por muros de pedra solta, e além destes os renques de carvalhos, ulmeiros, alguns castanheiros e um ou outro lódão mais frondoso, de tal forma que os raios de luz dificilmente batiam na terra encharcada pela humidade da noite. A subida tornou-se mais difícil, a terra deu lugar a lajes de pedra nua, os muros desapareceram e as árvores cada vez menos frondosas, eclipsaram-se numa subida mais íngreme, dando lugar a um fraguedo esparso permeado de arbustos rasteiros com a floração violeta da estação, uns meses além será amarela, para depois se tornar purpúrea.

A estrada tornara-se sinuosa a vencer a primeira lomba da serra, por isso o homem caminhava agora ao lado do animal, acariciando-lhe a garupa, incentivando-a em silêncio. Ao cabo de uma hora de caminhada, arribaram ao topo da quebrada, descobrindo-se o caminho adiante por muitas milhas, serpenteando entre a penedia e subindo sempre, escondendo-se a espaços por algum batólito mais agudo ou por uma colina mais pronunciada, até se perder de vista, diluído nas encostas rochosas. Na quebrada, o homem desguarneceu o animal da sua carga para cima de uma rocha mais alta situada na beira da estrada, desatou a rédea do cabresto e deixou a Carriça pastar os rebentos da erva tenra à vontade.

  1. A brisa fresca notava-se mais forte por ali, zunindo nos tufos de ervas sobreviventes aos rebanhos de cabras que costumavam percorrer a serrania, rilhando tudo à sua passagem. O homem sentiu-lhe a frescura e adivinhou a barra escura levantando no céu do lado do vento. Iam apanhar mau tempo lá no alto ou antes disso, pensou. Calculou o tempo, a velocidade das nuvens e a distância que lhes faltava percorrer até às chãs do couço, onde poderiam obter abrigo. Voltar atrás e descer à aldeia da barca não era opção. Deixou a mula pastar até estar saciada, o que nem demorou muito. Voltou a arreá-la, segurou-lhe a rédea, e antes de prosseguir, proferiu um ramerrão em voz cadenciada, enquanto esfregava o amuleto pendurado na correia da testeira da mula, que arrebitou as orelhas como que a ouvir melhor a fórmula de proteção. Partiram então, de frente para o vento e em direção à tempestade. À medida que subiam na estrada, subia a barra escura

  2. crescia diante deles, a brisa fresca tornou-se num vento frio e constante, a certa altura forte, até o sol desaparecer e dar lugar a uma névoa que ocultava os cabeços por onde a estrada serpenteava. A serra mostrava-se agora em toda a sua ferocidade, escura, deserta, inclemente, mas o acesso à portela que antecedia o couço era feito por um trilho íngreme abrigado do vento. Homem e animal calcorrearam aquele par de milhas da subida a muito custo, exaustos pela jornada.

No cimo da estrada, de novo expostos ao vento cortante, depararam-se com os muros do povo abandonado do couço. O homem procurou com a vista algum sinal de habitação entre a neblina, a espaços densa, depois mais fina arrastada pelo vento, não tendo a certeza de ali encontrar alma vivente. Há muitos anos que não percorria aquela estrada. Distinguiu uma casa coberta, de onde saía fumo. Homem e mula cobriram a distância com novo alento e pouco demorou para se colocarem diante da porta da cabana.

O homem bateu à porta três pancadas suaves, deliberadas para não ser o vento, mas mansas para não ofender os moradores. Passados alguns instantes, a porta abriu-se numa fresta estreita e escura, e o homem inclinou a cabeça ao descobrir-se do capuz, como sinal de respeito. A fresta quedou-se na mesma posição durante alguns momentos, tanto quanto durou a vénia do homem, e depois abriu-se, e uma mulher assomou à ombreira, colocando um xaile na cabeça, acenando ao homem para que a seguisse pela porta ao lado, onde se situava o estábulo.

O homem seguiu a mulher puxando a rédea, baixando a cabeça quando passou sob o colmo denso que cobria a cabana. O interior cheira a urina e bosta de cavalo e a palha húmida, mas era quente e asseado. A velha deixou-o a tratar da montada e saiu.

O homem retirou os alforges e os arreios à mula, e deixou-a livre no curro. Observou-lhe o estado das patas e dos ferros, e deitou a palha na manjedoura. Quando procurou água, descobriu-a num bebedouro de gado alimentado por uma bica de pedra esculpida toscamente em forma de cabeça de boi, caindo depois para um buraco no fundo da parede. Ficou impressionado com aquela solução engenhosa, aproveitando para lavar as mãos, a cara e o pescoço, repetindo a ablação até sentir a barba menos crespa. A mulher voltara a entrar com uma manta e um cesto com comida, mas ele recusou a manta, apontando para a sua.

O homem abriu um alforge e retirou de lá uma bolsa pequena cujo movimento fazia um ruído metálico. Desatou-lhe os atilhos de couro e retirou de lá umas moedas de prata que estendeu à hospedeira, mas a mulher levantou a mão em sinal de negação e saiu do curral, deixou-o sozinho novamente.

Além do espaço para a sua mula, havia no compartimento lugar para mais quatro, como se usava nas velhas estações de muda da estrada. Do lado oposto aos curros achava-se uma tarimba, destinada aos viajantes, encostada à parede meeira da casa, aproveitando as pedras aquecidas pela lareira existente no alçado oposto, para maior conforto dos transeuntes.

O homem pousou as moedas numa pedra saliente da parede que servia como mesa, guardou a bolsa no alforge e dirigiu-se a um dos catres da tarimba, varrendo-o com o braço da palha antiga, espalhando-a depois pelo chão. Em seguida, estendeu a palha fresca que a mulher lhe havia dado no tabuado, despiu o capote, esticando-o cuidadosamente sobre a palha do catre, e sentou-se na borda da tarimba, para descalçar as botas. Esfregou longamente os pés enegrecidos pelo tempo de caminho, conferindo o estado dos dedos e das unhas com a mesma minúcia com que um bom ferrador despenderia com os cascos do melhor dos cavalos.

Levantou-se e foi descalço até ao bebedouro, sendo-lhe muito agradável a sensação dos pés nus e livres em contacto com a frescura do chão. Pegou na vasilha e encheu-a com água, com a qual lavou os pés. Finda a lavagem, espreitou o cesto da comida pousado na pedra-mesa, onde descobriu um naco de pão não muito velho, um troço de queijo amarelo muito duro e um punhado de figos secos. Sentia-se demasiado cansado para comer, mas mastigou um figo. Depois, estendeu-se no catre sobre o capote e fechou os olhos, sentindo-os muito pesados, pensando no agradável que era deitar-se quente e seco. A mula soltou um peido sonoro. Ele adormeceu.